A escolha de Amira

Estou um bocado farta de tanta avaliação ocidental sobre o islão, aquela que é manifestamente confusa, ignorante, preconceituosa e mesmo islamofóbica. Falo do cidadão comum, mas com vasto acesso às redes sociais e ao ciberespaço, que vomita certezas que não passam, muitas vezes, de inverdades e que mete, sem conhecimento, toda a farinha no mesmíssimo saco. O mundo muçulmano é complexo, compreende história, geografia, cultura, tradição. São demasiadas as vezes em que confundem, estes comuns cidadãos, aspetos tradicionais e culturais de várias regiões com a religião predominante nas mesmas. Na verdade, penso que até mesmo os nativos das nações árabes e/ou muçulmanas fazem frequentemente o mesmo.

Uma das coisas sobre a qual acho que se debitam opiniões não totalmente fundamentadas é a questão dos cabelos ou do rosto cobertos. A confusão instala-se logo na não diferenciação entre hijab, niqab, chador, abaya, burqa. Poderia ir por aqui, tentar destrinçar um pouco estas diferenças e o teor geográfico das mesmas, aliado ou não a mais fervor ou fundamentalismo religioso – ou, tantas e tantas vezes, a marca e identidade cultural. Mas o que mais me instiga a escrever estas linhas é a noção de que, no ocidente, se associa automaticamente e sempre os cabelos cobertos a opressão-  e repressão – feminina.

Não digo que não a há, como é por demais óbvio, há e de que maneira, infelizmente. Sobretudo se falarmos de certos países, em que o rosto coberto é lei e em que polícias de costumes – como abomino tal coisa – zelam escrupulosamente pelo cumprimento dos preceitos que dizem religiosos e intocáveis. Mas o uso do hijab, que à partida deixa ver o rosto, não é, acredito e sei, exclusivamente uma imposição ou um símbolo de rebaixamento da mulher. É opcional, sim, em alguns, vários, muitos casos. E nem sequer é fruto de uma grande religiosidade, acredite-se, mas mais de um assumir um certo orgulho étnico, profundamente cultural. Neste momento há até uma postura ideológica subjacente a este ressurgimento em várias regiões, como clara forma de contraponto ao ocidente, e simultaneamente uma tendência de moda, tudo discutível, para mim, para nós, mas real.

Conheci várias mulheres muçulmanas e em muitas o hijab não as limitou em nada, não lhes retirou qualquer espécie de liberdade.  A Amira, por exemplo. A Amira esteve na UA a fazer doutoramento, era casada, tinha uma bebé pequena, que ficou com o pai na Tunísia. A Amira foi simplesmente a mulher mais alegre que conheci até hoje. Do género fazer festa e atirar os foguetes. De hijab e roupas relativamente simples, enquanto cá esteve saiu sempre, foi ao café, jantava em restaurantes, animou as hostes com as suas gargalhadas estridentes, experimentava as sobremesas lusas todas e chorava por mais, conviveu com os rapazes e colegas todos, tirava selfies e fotos com a malta, mostrou as fotos da sua bebé de 2 anos e do marido, visitava outras cidades, aproveitou bem, à sua maneira, como todos, o tempo em que esteve em Portugal. Voltou para o seu país, é engenheira, teve mais um filho, entretanto, e continua alegre e dinâmica. A Amira é livre e feliz.

Antes do cidadão comum abrir a boca ou carregar no teclado, convém esclarecer-se um pouco mais, ousar conhecer as coisas um pouco mais, saber de geografia e história um pouco mais. Convém e, sobretudo, confundir muito menos, generalizar muito menos, deduzir muito menos. Informação e conhecimento, assim como experiências de vida pelo mundo fora e com gente diferente talvez seja o que lhes faz falta. Não falem do islão como se o conhecessem profundamente, não conhecem, não conhecemos, é mais vasto, cheio de nuances e contraditório do que parece. E depois há pessoas. Muitas sem poder escolher, é um facto, mas ainda assim muitas livres por dentro. E depois também as há com poder de escolha. Que fazem opções, diferentes das nossas, sim, mas são elas, não nós. Para o bem e para o mal, nem tudo o que parece é.

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